O poder é quase sempre mais forte do que o bom-senso.
Neste caso, não se trata de um poder directo, mas sim indirecto. O papel que as chatas chegaram a ter, por mar, nalgumas guerras, uma vez que normalmente eram rebocadas e tinham a sua função.
O Nacional tomou a decisão de romper o estado de emergência, no seu período mais crítico, precisamente quando as famílias costumam reunir-se para passarem a Páscoa juntas, para dar o pontapé de saída a uma “espécie de treino’, aproveitando-se de um decreto-lei que, no alívio à alta competição e ao futebol profissional, mais valia nem sequer saído da gaveta, até pelos desencontros que gerou na Madeira.
Estava o estado de emergência no seu pico de rigores, repito, e a chata a querer navegar, sabedora que, mesmo num acto de atrevimento e de quebra de solidariedade, perante a DGS e o País.
O poder do decreto-lei também fica muitas vezes aquém do bom-senso e o comandante da chata, valente e destemido, foi à sua faina, sabendo que, na eventualidade de o mar ficar demasiado agitado, teria sempre umas embarcações de grande porte a fazer o resgate.
Para a irresponsabilidade, quando alinhada com os principais poderes, há sempre uma bóia de salvação e para o bom-senso não há ventiladores. Afogue-se.
A economia do futebol não pode esperar muito mas talvez o suficiente para não forçar ou atirar os jogadores para a arena. A pandemia não pode transformar-se num circo romano, no qual os poderes são maiores do que o bom-senso, e Evangelista neste caso já começa a ser torpedeado por um contra-almirante.
Difícil... é mesmo não alimentar os poderes maiores e, neste caso, há um denominador comum entre o interesse da chata e o interesse dos navios de escolta.
Essa coisa das cercas sanitárias não devia existir, nem em Câmara de Lobos nem em lado nenhum.
Sou e serei sempre pela protecção das vidas humanas, embora perceba que a economia não pode mesmo parar. E, no futebol, a protecção da sua economia não tinha de passar forçosamente pelo que resta do cumprimento da presente época desportiva.
A partir do momento em que a UEFA deu sinal de que as épocas deveriam terminar e a gestão dessa directriz, embora condicionada pelas decisões das autoridades sanitárias, seria realizada pelas Ligas/Federações, supunha-se que estas iriam fazer a administração das datas para o regresso aos treinos em datas comuns ou aproximadas.
Não fazê-lo mostra bem a incapacidade de consenso (Benfica e SC Braga ainda de férias) e as posições desgarradas.
O armador Alves antecipou-se porque achou que as águas já não se achavam ácidas de mais para uma corrida de carapau. E quando o Sporting se deixou capturar aparentemente (!) pelo mesmo tipo de anzol, o Nacional calçou as barbatanas e dirigiu a pergunta aos seus associados, em forma de comunicado: “Como acha que Rui Santos vai analisar a decisão do Sporting, clube que tem como presidente um médico, em promover a partir de hoje treinos individualizados com os seus atletas?
A – Uma decisão irresponsável e desajustada, que coloca em causa a verdade desportiva do campeonato.
B – Parabéns ao Sporting por ter contribuído para mostrar ao país que é chegado o tempo de começar a voltar à normalidade”.
Sempre gostei de um bom desafio e agradeço a estratificação da resposta. Se a opção está reduzida apenas às duas hipóteses sugeridas, a resposta é A. Porque não há nada que me possa fazer recuar sobre o facto de o recomeço da actividade, em forma de treinos, não ser realizada ao mesmo tempo. A isto chama-se deixar as embarcações navegar a seu bel-prazer e o papel de coordenação da Liga, neste aspecto, falhou redondamente.
A resposta B, só se fosse noutro Mundo, e não neste, com as provações que lhe estão a ser lançadas.
Quero relembrar, no entanto, que o CD Nacional tem um médico (João Pedro Mendonça), com larga experiência no futebol, presidente da ANEM (Associação Nacional de Médicos de Futebol), que considerou “pouco razoável” o regresso da sua própria equipa aos treinos. Mais palavras para quê?
Cá está: outra vez o bom-senso. Os médicos não podem ser monstros.
Estranho muito, por isso, a pergunta que foi dirigida aos sócios do Nacional (deveria ser “Considera ‘pouco razoável’ o regresso aos treinos, como preconiza o nosso médico João Pedro Mendonça?)" e, depois, quando reparei na capa de um diário desportivo a mostrar o distanciamento dos jogadores do Sporting em treino, disse cá para mim: tenho muitas saudades do futebol, mas já não sei quem mata mais: se o vírus, se as chagas da insensatez ou se o ridículo de tudo isto.
Rui Santos, SIC Notícias