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Ser Sporting não se implora, não se ensina, não se espera, somente se vive... ou não.
A segunda edição da época oficial de Rogério Casanova, jornal Expresso, com a sua análise humorística à performance dos jogadores do Sporting no jogo da 2.ª jornada da I Liga com o Vitória de Setúbal. Começa por nos deixar esta apreciação generalizada sobre uma das características desta equipa do Sporting: "Cruzamentos sempre razoáveis e sempre inofensivos - uma especialidade que deve ser treinada arduamente em Alcochete".
O leitor deve notar que apesar do semblante humorístico da sua coluna, Rogério Casanova deixa-nos um certo número de verdades para ponderar. Também inconfudível é o facto de Cristiano Piccini ser o seu alvo favorito.
Um daqueles jogos - a que está condenado 4 ou 5 vezes por época - em que podia perfeitamente ter entrado em campo com um casaquinho e um tablet. Agora já nem sequer se pode entreter com atrasos desesperados de Zeegelaar feitos invariavelmente para o seu pior pé. Certamente por tédio, ainda ensaiou uma saída algo maluca dos postes ao minuto 38, que acabou por compensar com uma mancha aérea em forma de suástica, e respectivo corte para canto com a panturrilha esquerda.
Mas, afinal, o que é que vocês querem? Incursão confiante com a bola no pé ao minuto 5, derivando para o meio e libertando Gelson na ala no momento exacto. Outra boa jogada no minuto seguinte, ganhando lançamento. Idem idem aspas aspas aos 14, a conseguir ganhar canto quanto estava em inferioridade numérica. Aos 17, com a bola imobilizada, encarou de frente o adversário directo, sentou-o e cruzou. É certo que a coisa não melhorou a partir daí. É certo que provavelmente piorou. E algures a meio da primeira parte, transformou-se numa espécie de periscópio com pernas, emergindo de tempos a tempos para procurar Gelson e entregar-lhe a bola o mais depressa possível, e à menor distância possível. Mas um lateral de equipa grande, nos jogos em casa, tem qualquer coisa como uma ordem de prioridades: ou desequilibra com bola; ou ajuda a desequilibrar sem bola; ou pelo menos tenta não atrapalhar.
O homem não sabe cruzar, é um facto. Mas já há demasiada gente a cruzar neste clube, e mal. Não é necessariamente um drama termos um lateral que não saiba cruzar. O drama é ele perder o medo de cruzar mal. Aquele medo de cruzar que mostrou na pré-época? É isso! Isso é que tem de ser recuperado. Medo, muito medo, que é para continuar fazer só as poucas coisas que sabe fazer bem. O resto há-de vir com calma, nem que seja de outro cidadão, aparentemente macedónio.
Encarregou-se tranquilamente de algumas funções distributivas, mas perante uma das equipas mais inofensivas que passou por Alvalade nos últimos anos, o seu principal papel foi geoestratégico: encarnar numa forma visível, e de carne e osso, as reservas estratégicas de testosterona do clube, não fosse alguém ter ideias de fazer alguma jogada de ataque perto de si. Ninguém teve, por acaso.
Membro mais proeminente da vaga de neo-turismo a assolar Lisboa, passeou-se tranquilamente pelo jogo com a placidez de quem passou três anos seguidos a aturar Messi e Iniesta a fazer-lhe fintas nos treinos e veio agora tirar fotografias pitorescas com pelourinhos e sardinhas, Edinhos e Costinhas. Sempre atento a dobrar Jonathan e a varrer sobras, impávido com a bola no pé, fazendo passes milimétricos mesmo pressionado, e mostrando na última meia-hora a energia e lucidez que já faltavam a alguns colegas para fazer coisas inteligentes e passíveis de criar perigo na baliza certa. Foi provavelmente o melhor em campo.
Foi o primeiro a iniciar uma jogada depois da saída de bola do apito inicial (mandou um criativo chutão lá para a molhada). Foi também o primeiro jogador do Sporting a ser ultrapassado em velocidade por um jogador do Setúbal (minuto 58, aflição entretanto resolvida por Matthieu).
Jonathan é raçudo. Não é lento. Não é tosco. Mas quem achar que hoje, por exemplo, fez um jogo melhor do que Piccini, ou que é, nesta altura, um lateral claramente superior a Piccini, deve rever o jogo inteiro outra vez: não para observar erros clamorosos, que não os teve, mas para observar a gritante falta de jeito que tem a escolher os espaços certos para ocupar quando a equipa ataca, quer tenha ou não a bola no pé.
Vê-lo jogar no lugar de William é um pouco como ver as montagens de treino paralelas num dos filmes da saga Rocky: um gajo a esmurrar lombos de porco num matadouro em Filadélfia e a engolir gemadas de penálti, enquanto outro anda a fazer jogging em cima de casacos de peles, com um daiquiri na mão.
A maioria dos adeptos de futebol tem, creio, um afecto instintivo pela prática dos cortes em carrinho, desde que sinta que não são um acto de desespero, mas sim uma maneira de ser. Battaglia tem portanto, e logo à partida, características ideais para cair no goto das pessoas de bem. Voltou a fazer um belo jogo, mas vê-lo a pegar na bola à frente dos centrais para iniciar circulações lentas, como fez na primeira parte, mais do que um erro de casting, parece um desperdício de recursos. Alargou o raio de acção depois do intervalo e começou a causar chatices sempre que cavalgava pela faixa esquerda ou aparecia em corrida perto da área. É cada vez mais improvável que não tenha sido uma óptima contratação.
Mais uns treinos em cima, mais uns minutos de correria desenfreada, e começam a vir à tona, lentamente, as coisas em que é exímio: não a "pensar" nem a "organizar", mas a reagir mais depressa do que todos os outros aos momentos em que a organização claudica e é preciso responder a emergências locais - o calcanhar instintivo na área a desviar um cruzamento atrasado de Gelson para a zona exacta onde estavam os dois colegas em condições de fazer alguma coisa útil; ou o outro calcanhar à saída da área do Vitória, impedindo o que podia ter sido um contra-ataque perigoso.
Definiu mal um ou outro lance de ataque, mas lá foi a correr resolver o problema. E quase marcou um golinho logo a abrir a segunda parte, mas o remate bateu no ferro. Devem faltar mais dois ou três jogos inteiros para voltar a algo parecido com a sua melhor forma, seja aqui, seja no Reino Unido.
Tentou um golo à Mancini aos 8 minutos, respondendo a um cruzamento de Acuña rematando em voo com o quinto metatarso. Foi por cima, e não voltou a aparecer em zonas de finalização para repetir as gracinhas do fim-de-semana passado. Passou grande parte do jogo longe da área e em inferioridade numérica - sozinho contra dois, contra três, ou por vezes contra quatro, se contabilizarmos entre os seus adversários um ou outro colega que aparecia na sua zona apenas como mais um obstáculo a ultrapassar. No passado, jogar sozinho contra o mundo nem sempre foi impeditivo de grandes exibições. Não foi o caso hoje.
Hão-de sair imensas alegrias daquele pé esquerdo; hoje, num jogo algo apagado, o que se viram, quando muito, foram presságios. Mas insistiu demasiado no cruzamento (e a qualidade dos mesmos foi-se deteriorando com o correr do jogo); e procurou muito menos as zonas interiores do que tinha feito na 1ª jornada, e até na estreia contra o Mónaco. Deve haver qualquer coisa tremendamente apelativa nas faixas laterais deste estádio, tal é a devoção que inspira nas pessoas.
Couberam-lhe os dois primeiros desequilíbrios do jogo, ultrapassando duas vezes Pedro Pinto no espaço de sessenta segundos. Os cruzamentos (quase sempre a procurar Dost ao segundo poste) saíram-lhe sempre razoáveis e sempre inofensivos - uma especialidade que deve ser treinada arduamente em Alcochete. Remexeu, deambulou, acelerou, agitou - mas o último passe teimava em sair mal. Ainda não é um jogador acabado, mas a acumulação de exemplos sugere que não é exactamente feito para criar ocasiões de golo, mas sim para criar o caos onde outros as possam criar. Um jogador de repentes beneficiará mais de lucidez à sua volta (Bruno Fernandes, por exemplo) do que de jogadores igualmente instintivos ou repentistas (como Adrien e Gelson). Além de que, no somatório actual das suas qualidades e defeitos, começa cada vez mais a parecer formatado para médio-ala e não para avançado.
Teve um gravíssimo momento de inépcia ao minuto 43, daqueles que merecia ser imortalizado em .gif: sozinho na área, isolado perante uns escassos cinco jogadores do Setúbal, não conseguiu levar a melhor e acabou por perder a bola. Como é possível? Talvez pior ainda foi a figura patética que fez em dois lances semelhantes, um em cada parte, quando não teve arte para ultrapassar sozinho os duzentos e noventa e cinco defesas vitorianos que guardavam o desfiladeiro das Termópilas, e preferiu servir colegas com toques de calcanhar. Acabou por marcou o golo da vitória a três minutos dos 90, arrancando o seguinte comentário a um senhor na mesa ao lado do café: "este é como o Jardel, também só marca de penálti". O senhor era adepto do Sporting e estava a falar a sério.
Um sistema de freios e contrapesos autodireccionado, cujo único propósito é corrigir as suas próprias debilidades.
Bem vindo ao Sporting, o clube onde a bola só entra depois de aprenderes quatro palavrões novos.
Não foi titular, e foi o último suplente a entrar: são estes os factos relevantes; tudo o resto - o que fez enquanto esteve em campo, foi a coisa menos surpreendente do mundo.
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