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O pródigo Nani

Rui Gomes, em 20.08.18

 

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Há quatro anos, quando Nani regressou pela primeira vez ao Sporting, os meus amigos sportinguistas exultaram. Creio que alguns terão mesmo ido ao aeroporto para uma daquelas recepções tipicamente otomanas a jogadores de futebol. Devo dizer que tinham razão para o entusiasmo. O regresso de um jogador como Nani ao futebol português ainda no auge das suas capacidades, mesmo que por empréstimo, justificava festejos precoces e abraços aeroportuários. Para os sportinguistas, por estarem habituados a assistir à distância ao regresso das suas antigas estrelas para os clubes rivais, ainda mais. “É o regresso do filho pródigo!”, dizia-me um amigo meu, eufórico, embora muito ignorante em matérias bíblicas.

 

Desta vez, com a nação leonina parcialmente soterrada debaixo dos escombros jurídicos e emocionais deixados pela passagem do furacão Bruno, o regresso de Nani já não motivou metade das comemorações. Não só o jogador tem mais quatro anos, como um segundo regresso tem aquele sabor plastificado das refeições de micro-ondas. O que acaba por ser uma tremenda injustiça para Nani. Num verão em que jogadores como Rui Patrício, William Carvalho, Gelson Martins, Rafael Leão e Podence, todos formados em Alvalade, abandonaram o clube, o seu regresso tem uma força simbólica cuja desvalorização só pode ser explicada pela profunda depressão e incerteza espiritual em que vive o comum adepto sportinguista. Enquanto outros mantêm em relação ao clube uma distância asséptica, como se não quisessem ficar contaminados pelo mal invisível que o assola, Nani, uma vez mais, chegou-se à frente e assumiu responsabilidades, como se estivesse a cumprir um destino. E falamos de um jogador que deu muitos milhões a ganhar ao clube numa época em que este formava como nunca e vendia como quase sempre: mal.

 

Por estas razões, se alguém não merece o epíteto de filho pródigo esse alguém é Nani. Aqui vai um bocadinho de catequese de segunda-feira, que espero que aquele meu bom amigo possa ler. A parábola do filho pródigo é talvez a mais universal e conhecida de todas as que o mestre da Galileia usou para se fazer entender junto dos que o ouviam. Está no evangelho segundo Lucas, e em nenhum outro.

 

O “filho pródigo” é o mais novo dos dois filhos de um rico lavrador. Certo dia, pede ao pai o quinhão da fortuna que lhe cabe, parte para uma terra distante e por lá esbanja todo o dinheiro “de forma isenta de salvação.” Nessa terra longínqua, passa fome e vê-se obrigado a guardar porcos. Lembra-se então dos jornaleiros que trabalham nas terras do pai: nem eles conhecem semelhante miséria. Faminto e infeliz, decide voltar à casa paterna e pedir perdão ao pai. Este, ao vê-lo, fica tão feliz que manda os criados matar um vitelo para que possam festejar e alegrar-se.

 

O filho mais velho ressente-se do gesto do pai: “Eis que há tantos anos te sirvo como um escravo e nunca transgredi uma ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com prostitutas, mataste-lhe o vitelo gordo.” O pai aproveita então para lhe explicar como é que as coisas funcionam. Ele sempre tinha estado ali, mas o outro filho tinha morrido e agora voltava à vida, perdera-se e agora fora encontrado. A alegria do pai era a alegria justificada de recuperar a ovelha tresmalhada, o filho pródigo.

 

O leitor certamente já terá reparado que sempre que alguém usa a expressão “filho pródigo” o faz como se o adjectivo fosse laudatório. Talvez o curioso facto se deva à contaminação de outra expressão popular – “o bom filho a casa torna” – talvez se associe o pródigo a prodigiosos prodígios, talvez baste o “pró” para se pensar em vantagens, ganhos, lucros. E, no entanto, pródigo é aquele que esbanja, que desperdiça, que gasta. Como se percebe, um verdadeiro regresso do filho pródigo seria se João Moutinho, a chamada “maçã podre”, voltasse a Alvalade contrito e disposto a fazer as pazes com os adeptos do Sporting. O regresso do filho pródigo teria sido o de Simão Sabrosa depois de brilhar no Benfica. O regresso de Nani é o regresso do bom filho a um clube habituado a que os filhos cuspam no prato onde comeram.

 

Dir-se-á que Nani não é Cristiano Ronaldo, asserção que nem eu me atreverei a contestar. Mas esse azar de ser contemporâneo de um extra-terrestre, e o percurso algo errático e desafortunado dos últimos anos, não deve obliterar os seus méritos e qualidades, que são muitos e raras. São certamente mais do que suficientes para fazer dele o líder do balneário do Sporting e das mais brilhantes estrelas do nosso cada vez mais apagado firmamento futebolístico. Com os seus dois golos na noite de sábado, Nani lembrou aos adeptos que, mais do que o filho pródigo, ele é, na verdade, o filho que nunca transgrediu. O público, a corrigir o lapso da falta de entusiasmo, retribuiu-lhe com uma justa ovação. Como se festejasse o regresso de um filho que nunca abandonou a casa.

 

Bruno Vieira AmaralTribuna Expresso

 

publicado às 12:00

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1 comentário

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De Victor Peres a 20.08.2018 às 12:52

Creio que depois das declarações de amor ao SLB feitas por Simão ou ao FCP por Moutinho ou Quaresma, o seu regresso seria menos de um filho pródigo, antes uma afronta ao clube que os formou.
Quanto ao fundo do texto e ao merecimento de todos os encómios a Nani, perfeitamente de acordo.

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