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Ser Sporting não se implora, não se ensina, não se espera, somente se vive... ou não.
Imagem social dos futebolistas em Portugal nos anos 30 e 40
Em Portugal, nas décadas de 1930 e 1940, o Estado Novo ainda mantinha com o futebol uma relação de notável ambiguidade. É que o regime político não considerava o futebol como a modalidade desportiva capaz de regenerar a condição física e moldar o carácter dos portugueses. A ginástica, a vela, o remo ou o atletismo desempenhariam muito melhor esse papel. Isso reflectiu-se na imagem social e no estatuto remuneratório dos futebolistas e no semiprofissionalismo que vigorava.
Ser futebolista não era considerado uma profissão, pois essa actividade não se enquadrava no conceito de sociedade do Estado Novo, essencialmente normalizada e organizada. Cada um no seu próprio lugar, e o lugar de futebolista não estava previsto. Obrigatoriamente os jogadores declaravam outra profissão oficial, que era a que constava no Bilhete de Identidade. Depois da 2ª Guerra Mundial, a crescente popularidade do futebol e a sua importância social e económica, o crescimento urbano, a cultura de massas e a mudança das mentalidades introduziram progressivas alterações.
No Sporting na segunda metade dos anos 30 vigorava um salário mensal de 700$00, que era fixo para todos os jogadores principais. A isso podia acrescer uma determinada quantia proveniente da “caixa dos leões” (ou “cotização dos carolas”) que reforçava de forma diferente os ordenados de alguns atletas. Fernando Peyroteo refere no seu livro “Memórias de Peyroteo” (página 68) que “aos que mereciam, o senhor Francisco Franco, dava, por fora, 200$00 ou 300$00 mensais. Felizmente, nunca me faltou com o subsídio extraordinário”.
Havia, ainda, as “festas de homenagem” ou “festas de despedida” quando os futebolistas terminavam as suas carreiras, cuja receita era muito importante para eles. Tratava-se de uma significativa forma de solidariedade entre jogadores. De acordo com o estatuto pessoal e desportivo de cada um, organizavam-se jogos nas quais participavam colegas de outros clubes. No caso dos jogadores do Sporting era normal participarem do Benfica ou do Belenenses, entre outros, ou organizarem-se equipas mistas. Em casos excepcionais, como o de Peyroteo, recorria-se a equipas estrangeiras.
Na fotografia, a equipa do Sporting que defrontou um misto de Almada na “festa de homenagem” a João Jurado em 6 de Junho de 1945. Jurado foi um dos mais destacados futebolistas leoninos entre 1926 e 1940. Não prescindiu da sua “festa”, apesar de ter a vida bem organizada por ser proprietário de um táxi.
Na década de 1940, o regime do Estado Novo mantinha com o futebol em Portugal uma relação autoritária e centralizadora no que refere ao dirigismo dos clubes e dos organismos federativos. Mas, de enorme ambiguidade e oportunismo no que refere aos seus méritos enquanto actividade desportiva.
Segundo a perspectiva ideológica do regime nessa altura, o futebol não era a modalidade desportiva que permitiria uma finalidade regeneradora da condição física e espiritual dos portugueses. A ginástica, a vela, o remo ou o atletismo desempenhariam melhor essa função. Aliás, a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho e a Mocidade Portuguesa privilegiavam estas modalidades. É apenas a partir dos anos 50 que a FNAT começou a proporcionar aos trabalhadores a possibilidade de praticar desportos colectivos. O futebol era ainda frequentemente associado a situações de indisciplina individual e de grupo e à alteração da ordem social.
Mas, a popularidade do futebol, a sua importância económica, a cultura urbana de massas e o crescimento urbano colocaram o desporto-rei na agenda das reformas urgentes. Assim, a sucessiva acção legislativa, a centralização das instituições desportivas e a reorganização das competições decorreram da necessidade de adequar o futebol às novas realidades sociais, culturais e demográficas e às intenções de um Estado que se caracterizava por ser altamente hierarquizado, autoritário e disciplinador. O Decreto nº 32 946, de 3 de Agosto de 1943, teve essa intenção ordenadora.
Foi neste contexto ideológico que se verificou uma das situações mais dramáticas que envolveram um dirigente desportivo português. Tratou-se da irradiação determinada pelo governo, em 1943, de Augusto Amado de Aguillar, presidente do Sporting. Por essa decisão governamental, o dirigente sportinguista ficou impedido de voltar a exercer quaisquer cargos de direcção em instituições ou organismos desportivos. O Supremo Tribunal Administrativo levantou o castigo em 1959, mas manteve a fundamentação da pena aplicada em 1943.
Amado de Aguillar foi um futebolista praticante muito activo na sua terra natal, Cuba, nos anos 20, um dos fundadores do Lutador Foot-Ball Club e, mais tarde, do Sporting de Cuba, filial nº 50 do Sporting. Advogado, foi eleito presidente do Sporting em 2 de Setembro de 1942 e demitido em 26 de Outubro de 1943.
A irradiação de Amado de Aguillar aconteceu na sequência da entrada em vigor do Decreto nº 32 946, e da nova regulamentação sobre as transferências dos futebolistas. O Sporting pretendeu contratar António Marques ao Académico do Porto, mas, depois de uma primeira autorização pela Direcção-Geral dos Desportos, a transferência do jogador ficou suspensa. O presidente leonino reclamou da suspensão da transferência e em ofício solicitou que “a própria Direcção-Geral não entrave a indispensável reorganização legal da secção de futebol do Clube”.
A troca de correspondência continuou nos dias seguintes, com Amado de Aguillar queixando-se em ofício de 13 de Outubro que “aborrece-me, profundamente, trabalhar no cumprimento de ordens dadas por V. Exa. em tom de quem se dirige a funcionários inferiores, esquecendo, lamentavelmente, que isto de dirigir um clube desportivo é coisa que só nos leva o repouso, amizades e, até, muito dinheiro”. O Director-Geral dos Desportos, Sacramento Monteiro, considerou, em 16 de Outubro, ter havido um “grave acto de indisciplina” e que o presidente do Sporting não possuía “idoneidade para o exercício de funções dirigentes em organismos desportivos”. Por essa razão, propôs a sua irradiação sumária, sem a realização de processo disciplinar, no que foi aprovado pelo Ministro da Educação Nacional. No entanto, conhecedor da decisão do governante, o presidente do Sporting tinha-se demitido das suas funções na véspera.
A irradiação de Amado de Aguillar implicou a nomeação pelo governo de uma Comissão Administrativa, dirigida por Diogo Alves Furtado, o presidente da Assembleia Geral do Sporting. Esta Comissão Administrativa entrou em funções no próprio dia 16 de Outubro, mas cessou-as em 17 de Novembro de 1943 em virtude da eleição de uma lista presidida por Alberto da Cunha e Silva para a direcção do Clube. Curiosamente, a época de 1943-44 foi boa para os leões, que conquistaram o Campeonato Nacional e a Taça Império. Amado de Aguillar só voltou a desempenhar funções desportivas na gerência de Brás Medeiros, como presidente da Assembleia Geral, entre 1965 e 1973.
Nota: A correspondência de Amado de Aguillar e a decisão de Sacramento Monteiro citadas neste texto podem ser consultadas no Arquivo da Direcção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, Caixa, 04/357 - Actividades Desportivas, Corpos Gerentes, Disciplina, Diversos, 1954. Pasta 1959 - Corpos Gerentes. Procº 2/2, in “A pureza perdida do desporto: futebol no Estado Novo”, de Rahul Mahendra Kumar.
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