Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Ser Sporting não se implora, não se ensina, não se espera, somente se vive... ou não.
1.
Manuel Fernandes não morrerá.
Por isso, quando for noticiada não leves muito a sério. É que o Manel é imortal, sobreviverá na memória dos sportinguistas e dos que gostam de futebol, um homem assim não se vai como os outros, haverá sempre quem dele se lembre, haverá sempre quem se recorde de um golo, de um salto de peixe, de um penalty arrancado com arte e engenho, de um 7-1- a que não me apetece voltar.
Ninguém se esquecerá dos seus golos, dos seus recordes, da sua camisola 9, das amizades que fez com quem não era do Sporting, das tertúlias com benfiquistas e portistas, das almoçaradas pela tarde fora, cabeças de peixe ou arroz de garoupa.
2.
Já não posso dizer mais do Sporting, qualquer dia serei proibido de voltar ao Estádio da Luz e proscrito pelo meu Benfica, mas não resisto à imagem de Frederico Varandas e Gyökeres a caminho do quarto onde Manel Fernandes está internado.
Não esquecerei aquela imagem com o presidente e a estrela da companhia mais a taça de campeão num corredor quase vazio de um hospital onde tantos lutam pela vida.
O Manuel Fernandes também.
Que os esperava vestido à Sporting.
Que com esforço e felicidade se levantou da cama para poder estar firme no momento em que a taça lhe chegasse. É bem capaz de ter imaginado levantá-la com a sua eterna braçadeira de capitão.
3.
Manel não está nada bem, mas nunca esteve tão bem.
Nunca sentiu tanto carinho das pessoas.
Tanta consideração do Clube.
Para ele que viveu em função do Sporting é um ponto final que nunca será parágrafo, não há nada que pudesse desejar de melhor para a recta final da sua maratona.
4.
Impossível apagar a imagem. E do pedido de Manuel Fernandes ao goleador sueco para que ficasse mais uma temporada por ser ano de Liga dos Campeões.
Gyökeres disse que sim e Manel agradeceu com as lágrimas nos olhos.
Lágrimas diferentes da criança de 10 anos que viu a mãe partir antes de tempo, a mãe que o fez amar o Sporting.
Lágrimas de agradecimento por não se terem esquecido do rapaz da aldeia de Sarilhos, o miúdo que poderia ter sido pescador ou salineiro, mas que foi ponta de lança.
Querido Manel Fernandes, o que disseste a Gyökeres também eu te digo a ti.
Vê se ficas pelo menos mais um ano, não te esqueças de que na próxima época há Champions.
(Este belíssimo e emocionante “postal” de Luís Osório foi sugerido ao blogue Camarote Leonino pela nossa estimada colaboradora Carlinha MR.)
1.
Manuel Fernandes foi operado no final de maio a um tumor.
Uma intervenção delicada, um cancro nas vias biliares nunca é um passeio no parque. É silencioso, ataca invisível e quando o vemos, quando o pressentimos, já é difícil derrotá-lo.
Mas o Manel, grande figura do nosso desporto, um dos símbolos maiores do Sporting, é um vencedor. E um vencedor como sabemos não é o que ganha sempre, mas o que nunca desiste de lutar.
2.
Dizem-me que a operação correu bem.
Talvez o Manel esteja já a fazer perguntas sobre a nova época, sobre quem sai e quem entra no seu Sporting, sobre a vontade que tem de se levantar, de ir ao café, de estar com os amigos, de ir a Alvalade.
Tudo no Manel é ginga de futebolista.
As pernas arqueadas, os olhos de menino encantado quando engana o defesa, quando lhe troca as voltas.
Tudo nele é futebol e balneário.
Sabe tudo acerca desta imbatível metáfora da vida, sobre os golos que se marcam e os que se falham, sobre a felicidade de ganhar e o medo de perder.
E é amigo do seu amigo.
Tem tantos amigos o Manel.
Amigos de todos os clubes.
É fanático do Sporting e vai aos arames.
Muitas vezes é cego na análise, mas acaba a discussão e procura o abraço e um jantar que resolva todas as arrelias de um bate-boca.
Manuel Fernandes é o futebol em estado puro.
É como o Joaquim Agostinho no ciclismo, ganhar é tão importante como ser boa pessoa.
Na aldeia de Sarilhos, muito perto da Moita, podia ter sido pescador ou salineiro, a sua casa podia ter sido para sempre a casa dos homens que iam para o rio ou para o mar, casas brancas e humildes com redes à porta para que as moscas não pudessem entrar.
Só que ele marcava muitos golos.
3.
Era um rapaz vivo, mas triste.
A sua mãe partira e o Manel só tinha 10 anos.
A mãe de quem ele gostava e dependia tanto. Ouvia com ela os relatos do Sporting e a sua morte foi talvez o detonador para ele se cumprir.
O detonador para que um dia tenha começado a jogar no Sporting, quem sabe se não terá sido isso?
Porque cada golo lhe era dedicado, porque todas as vezes que enganou os defesas, todos os penalties que conquistou era para o céu que olhava com o seu sorriso malandro.
Mas jogar no Sporting parecia um sonho distante.
É que apenas aos 16 anos calçou umas chuteiras pela primeira vez. Antes não havia dinheiro para isso, precisava de ajudar em casa e de comer todos os dias.
Só que no Sarilhense marcou muitos golos.
Depois foi para a CUF e marcou muitos golos.
E terminado o contrato com a CUF ia assinar pelo FC. Porto, mas rezou muito para que o Sporting o resgatasse, falou muito com a mãe, pediu-lhe que intercedesse.
O Sporting desviou-o mesmo e aí começou a sua história.
Golos e golos.
Um avançado predador, um rapaz humilde e de olhar travesso, de miúdo eterno com a marca de uma tristeza que o fez sempre separar o gosto pela bola da necessidade absoluta de não perder mais ninguém.
De ter a sua casa sempre com uma porta aberta para quem chega, de ter sempre pronto um bocadinho de vinho tinto e um queijinho, de ter benfiquistas e portistas a quem trata por “irmão”.
4.
O Manuel Fernandes está a recuperar de uma operação delicada.
É demasiadamente novo para deixar de marcar golos – o que continua a fazer dentro da sua cabeça.
Foi homenageado pelo Sporting antes do último jogo em Alvalade com o Benfica – e foi tão bonito ver toda a gente a aplaudir, o público dos dois lados, os jogadores das duas equipas, os amigos que lá estiveram.
E foi tão bonito ver os seus olhos brilhantes.
O seu silêncio num mar de aplausos.
Senti-o sozinho, dentro do seu mundo particular, a rever a sua vida desde o pé descalço de Sarilhos até ao cume da montanha de onde nunca mais sairá.
Obrigado, Manel.
Obrigado por todos os golos.
Mas sobretudo, obrigado por tudo o que és e ofereces aos outros.
LO
(Luís Osório na sua página no Facebook em 8.6.2023)
«O que Sérgio Conceição disse de Rui Vitória – comparando-o a um boneco do filho – é comparável ao que Jorge Jesus disse em 2016 do treinador do Benfica. Entre outras preciosidades linguísticas explicou ao país que o homem não tinha unhas para um carro de alta cilindrada porque nem sequer o definia como treinador.
Entretanto o pobre treinador do Benfica, um “xoninhas” que não parece aquecer ou arrefecer, ganhou tudo o que havia para ganhar nos últimos dois anos em Portugal. No entanto, mesmo entre os benfiquistas, continua a existir uma desconfiança em relação às suas qualidades. Ao mínimo deslize lá vêm as críticas, os lenços brancos, o medo de que o homem não consiga levar o barco a bom porto. E os treinadores adversários, com um perfil oposto ao de Vitória, aproveitam logo para esticar a corda e sangrar a ferida.
O que quero dizer com isto é uma coisa simples e bastante assustadora. Em Portugal prefere-se quem fala alto a quem é manso. Sérgio Conceição ainda não ganhou nada na sua carreira de treinador mas a sua confiança é tal, a sua brutalidade é tão natural que grande parte dos benfiquistas, mesmo que peça no estádio pelo penta, no fundo dos fundos, acha que Conceição é melhor treinador do que Vitória.
O futebol é uma selva. É um recreio de crianças onde a crueldade não se esconde. Se repararmos bem, nas comissões de honra de Pinto da Costa, Bruno de Carvalho e Luís Filipe Vieira estão combatentes contra o Estado Novo, democratas genuínos e respeitáveis personagens que criticam a falta de respeito de alguns políticos pelas instituições. Manuel Alegre está ao lado do presidente do Benfica, Eduardo Barroso mantém-se firme no apoio ao presidente do Sporting, Rui Moreira é um conhecido apoiante de Pinto da Costa. São os nomes que me ocorrem, poderia dar mil outros exemplos de gente que fora do futebol seria capaz de matar ou morrer para defender a democracia. Qualquer um deles acharia repugnante apoiar cada um dos três presidentes se estes fossem candidatos políticos a uma qualquer eleição.
Um paradoxo interessante. É que o futebol não é democrático. A única coisa que importa é ganhar, o resto dá-se de barato. Quando um pobre jornalista faz uma pergunta a sério os protagonistas olham de lado, sorriem com desdém ou ameaçam quem a faz. No futebol concorrer a umas eleições com quem está no poder é quase uma impossibilidade – quem se atreve tem como certa uma viagem ao inferno.
Para que não existam equívocos: o futebol profissional (como o conhecemos) não é um desporto e não é uma democracia. O futebol não é para totós ou para gente realmente séria. No futebol é admissível socialmente que as pessoas não se portem bem. Podem chamar nomes aos árbitros, fazer esperas aos jogadores, intimidar adversários e alimentar conversas de café em que se aliviam as tensões que, noutras circunstâncias da vida, teriam de ser caladas.
No futebol os sócios dos clubes não votam em candidatos que pareçam realmente sérios – são considerados anjinhos. Gente que não saiba reconhecer o bas bond dificilmente ganha eleições. Gente que não pareça familiarizado com as trocas de favores, os meandros da arbitragem ou a linguagem marialva não ganha eleições.
O futebol é uma máfia. Com claques que são os escudos dos presidentes. Com a aprovação cobarde de uma classe politica que assim legitima os usos e costumes do futebol. A única vez do ano em que vemos deputados de todas as cores partidárias em convívio é nos almoços ou jantares anuais oferecidos pelos presidentes dos maiores clubes.
No futebol ninguém leva a mal. É uma brincadeira. Rimo-nos com os programas de televisão, com os comentadores mais perversos. Divertem-nos. Criticamo-los mas vemos. A comunicação social critica mas potencia isto. Precisa disto.
Os chamados homens o futebol são tipos vividos, “pintas” que falam um léxico próprio e defendem o “cheiro do balneário” como statement filosófico e o “chico-espertismo” como modo de vida. São personagens da noite, personagens de alguns livros de Cardoso Pires.
As elites adoram-nos porque são tudo o que elas não conseguem ser, o seu modo de estar desperta o lado infantil dos que na sua chata vida têm de se comportar em chás das cinco, festas de beneficência e reuniões formais. O povo adora-os porque são o que mais próximo têm do sabor de uma vingança.
O futebol une as classes sociais num objetivo comum: ganhar e viver em transgressão, do lado dos espertos e não dos totós.
Coitado do Rui Vitória. O que o safa é ganhar».
Texto da autoria do escritor Luís Osório
***Agradecemos a referência ao nosso estimado leitor JOÃO PAULO GONÇALVES
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.