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Ser Sporting não se implora, não se ensina, não se espera, somente se vive... ou não.
Pelo Sporting passaram grandes goleadores. De memória relembro alguns, sem desprimor por todos os outros: Vasques, Martins, Jordão, Manuel Fernandes, Yazalde, Acosta, Jardel, mas para mim , o maior de todos, foi Peyroteo.
Fernando Baptista de Seixas Peyroteo, (na imagem) nasceu em 1918, Angola, na localidade de Humpata. Aos dezasseis anos começou a jogar futebol no Sporting Clube de Luanda. Em Junho de 1937 chegou a Lisboa na companhia da mãe, Maria da Conceição, professora primária que se deslocou à metrópole por motivos de saúde. Em Portugal, foi apresentado a dirigentes do Sporting, por Aníbal Paciência, seu amigo angolano e jogador do Clube. Depois de conhecer a sede da colectividade e de se comprometer em jogar no Sporting, foi a Coimbra assistir a um jogo particular, onde conheceu a equipa e o treinador Szabo. Posteriormente, foi abordado pelo FCP que lhe ofereceu melhores condições, que ele recusou por já estar comprometido. A palavra dada, assim como o seu sportinguismo, prevaleceram. Coisa rara nos tempos actuais. Na sua biografia, escreveu que assinou o contrato sem o ler, e sem fazer perguntas.
Estreou-se no dia 12 de Setembro de 1937, contra o SLB, sendo autor de 2 golos dos cinco marcados, pelo SCP. O treinador Szabo, elogiou-o e disse-lhe."Fernando, você tem qualidades bestiais para fazer-se no melhor avançado do Mundo”.
Jogou durante 12 épocas, sendo sempre o melhor marcador da equipa. Marcou 540 golos em 332 jogos oficiais, (no total 700) média de 1,6 por jogo, o que faz dele, ainda hoje, o jogador mundial com melhor média de golos marcados em jogos dos campeonatos nacionais, de acordo com a Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol.
Terminou a carreira em 1949, com 31 anos, devido a dificuldades financeiras na sua empresa de desporto. Utilizou o jogo de homenagem para arrecadar cem contos e pagar parte das dívidas contraídas.
Setenta e cinco anos depois, o Sporting adquiriu um avançado de nome Gyökeres, por um preço muito elevado para as possibilidades do Clube. Hoje, não há dúvida que foi dinheiro bem investido, não só pelo que se valorizou, mas pelas valências que trouxe à equipa, sendo fundamental na conquista do último campeonato. Os números não enganam: 50 golos marcados em todas as provas.
A questão que se pode bem colocar é se, salvaguardadas as devidas distâncias e estilos, estaremos perante um novo “Peyroteo”. O futebol actual é muito diferente do dos anos 40 e 50, mas em termos de produtividade, e pela amostra que temos, penso poder concluir-se que estamos perante um goleador de excelência.
Comparando os currículos dos dois jogadores, verifica-se que são diferentes. De Peyroteo, que se estreou com 19 anos, no Sporting, podemos dizer que “pegou de estaca” afirmando-se de imediato como “matador”. Gyökeres, tem um longo percurso desde que começou a jogar. Passou por diversos clubes e apenas se afirmou como goleador no Conventry, depois de ter passado por empréstimos a vários clubes. Mas o grande salto deu-se no Sporting, onde arrisco dizer que houve a mãozinha de Rúben Amorim. Pode afirmar-se que era um diamante por lapidar.
Nesta época far-se-á a prova. Gyökeres poderá confirmar-se como um grande goleador, como parece estar a acontecer e nesse aspecto, poderemos estar perante um Peyroteo 2.0, com a diferença que não fará toda sua carreira no Sporting, como declarações recentes comprovam. Também questiono se num grande campeonato, conseguirá manter a mesma veia goleadora.
Há inúmeras histórias a propósito de grandes disputas entre defesas e avançados em jogos de futebol. Muitos garantem que eles não são propriamente farinha do mesmo saco e é frequente ouvir-se falar das vezes em que o caldo ficou bastante entornado. Por exemplo, ficaram memoráveis os duelos entre Fernando Peyroteo e o benfiquista Gaspar Pinto pela faísca que provocavam.
No entanto, parece que não tem de ser necessariamente assim e até acontece que defesa e avançado se façam fotografar sorrindo para a posteridade. É o caso desta fotografia do “bombardeiro” Peyroteo e de Francisco Vitória antes de um Portimonense - Sporting para a Taça de Portugal, em 20 de Junho de 1948. Curiosamente, Francisco Vitória também era conhecido por Chico Caceteiro vá lá saber-se porquê.
Os leões venceram facilmente o jogo por 6-1 e o avançado sportinguista não deixou os seus créditos por mãos alheias. O jornalista algarvio Constantino Romão escreveu que “coube ao Chico Caceteiro fazer a marcação ao Peyroteo, que era o melhor marcador de golos em Portugal. O Peyroteo marcou cinco golos, mas o Chico fez uma exibição memorável, que tenho a certeza nem ele próprio esqueceu”.
No sábado, Viktor Gyökeres vai pisar a relva de Portimão, num jogo crucial para a equipa do Sporting. O grande objectivo é terminar o ano da melhor maneira, no primeiro lugar do campeonato, e à espera dele não estará apenas um, mas vários “caceteiros” para tentarem evitar os golos do actual “bombardeiro” sportinguista. Numa entrevista ao jornal Record, Gyökeres referiu a sua dificuldade em lidar com tantas faltas que os árbitros lhe marcam. Logo ele que é tão severamente castigado pelos adversários. Há coisas que não mudam no futebol!
A fotografia é de Chico Vitória (trata-se de outro Francisco Vitória), repórter fotográfico do futebol algarvio entre os anos 30 e 50 do século passado.
Para o Sporting, a época de 1945-46 estava a ser frustrante quando em Maio o presidente Ribeiro Ferreira convidou Cândido de Oliveira para orientador técnico, mas continuando Abrantes Mendes com a função treinador de campo. Depois do 2º lugar no Campeonato de Lisboa, os leões cedo ficaram afastados da luta pelo título de campeão nacional. Por isso, tornou-se indispensável conquistar a Taça de Portugal que se realizava em Junho.
Depois de ter eliminado a Académica e o Vitória de Guimarães, o sorteio da meia-final determinou que o Sporting defrontasse o Famalicão nas Salésias. Cândido de Oliveira preparou para esta eliminatória uma linha avançada que vinha a apurar nos últimos jogos. O treinador considerava que o ponto fraco da equipa leonina residia na incapacidade dos dois interiores de proporcionarem o devido apoio a Peyroteo, ao mesmo tempo que era um admirador das qualidades de Sidónio.
Por essa razão, nesse desafio com os famalicenses, colocou Peyroteo e Sidónio lado a lado numa linha de quatro avançados, recuando o interior esquerdo António Marques para médio ofensivo. Tratava-se de um invulgar 3-3-4 que substituiu o habitual WM (3-2-2-3), o que implicou outra ideia de organização da equipa. Os leões venceram por um claro 11-0, com cinco golos à conta dos dois jogadores que alinharam na zona central do ataque. Durante o jogo lesionaram-se quatro famalicenses que tiveram de abandonar o campo, os sportinguistas abrandaram e no fim nem sequer festejaram o acesso à final da Taça.
Nos últimos jogos da época, o Sporting venceu seis e empatou um, e Peyroteo e Sidónio marcaram 14 golos cada. No Verão de 1946, os leões contrataram Vasques e Travassos que se juntaram a Jesus Correia, Peyroteo e Albano que já lá estavam para constituírem os “Cinco Violinos”. Sidónio perdeu espaço, voltou à sua condição de suplente e saiu depois para o Belenenses.
Ficha de jogo:
Taça de Portugal 1945-46 – Meia-final
Sporting 11 - Famalicão 0
Estádio das Salésias, 23 de Junho de 1946
Árbitro - Domingos Miranda (Porto)
Sporting - Azevedo; Álvaro Cardoso e Manuel Marques; Veríssimo, Barrosa e Juvenal; Armando Ferreira, Sidónio, Peyroteo, António Marques e Albano
Treinadores - Cândido de Oliveira e Abrantes Mendes
Famalicão - Sansão; Armando e Cerqueira; Ferrão, J. Szabó e Adelino; Mendes, Sampaio, Pires, Oscar Tellechea e Gita
Treinador - Janos Szabó
Golos - Barrosa (25’ e 83’ g.p.), Sidónio (35’, 42’ e 76’), Peyroteo (49’ e 60’) e A. Marques (69’ e 86’)
Na inauguração do Estádio Nacional, em 10 de Junho de 1944, disputou-se um Sporting- Benfica. Os leões tinham conquistado o Campeonato Nacional e os encarnados a Taça de Portugal, e a Federação Portuguesa de Futebol instituiu a Taça Império para ser disputada pelos vencedores dessas duas competições. Apesar de prevista a sua continuidade, apenas seria retomada em 1979 com a designação de Supertaça Cândido de Oliveira.
O Sporting venceu por 3-2 (1-1 no tempo regulamentar) com inteira justiça. Adaptou-se melhor à forte ventania e, com grande segurança defensiva, através do seu futebol ofensivo e rectilíneo manteve a defensiva benfiquista sob pressão constante. Fernando Peyroteo fez uma grande exibição e foi o autor do primeiro golo no Jamor.
Tavares da Silva escreveu a crónica do jogo para a revista Stadium (nº 80 de 14 de Junho de 1944) e registou esse golo inaugural da seguinte maneira: “A Peyroteo coube a honra de marcar a primeira bola, inaugurando as redes do Estádio Nacional. Sem dúvida, o destino escolheu bem, neste capítulo, dada a formidável carreira de rematador do avançado-centro sportinguista.”
Ficha de jogo:
Taça Império, 10 de Junho de 1944
Sporting 3 - Benfica 2
Arbitro - Vieira da Costa (Porto)
Sporting - João Azevedo; Álvaro Cardoso e Manuel Marques “Manecas”; Canário, Octávio Barrosa e Eliseu; Mourão, João da Cruz, Peyroteo, António Marques e Albano
Treinador - Joseph Szabó
Benfica - Martins; César Ferreira e Carvalho; Jacinto, Albino e Francisco Ferreira; Espírito Santo, Arsénio, Julinho, Joaquim Teixeira e Rogério “Pipi”
Treinador - János Biri
Golos - Peyroteo (60’ e 92’), Espírito Santo (77’), Eliseu (107’) e Julinho (115’)
Na fotografia, a bola rematada por Peyroteo está dentro da baliza, o guarda-redes Martins nada pode fazer e Albano prepara-se para festejar.
Joseph Szabo revelou sempre uma vontade avassaladora de vencer no futebol. Vencer e fazer a sua equipa vencer. Por esse motivo entrou em conflitos com dirigentes de clubes e chegou a ser muito duro com os seus jogadores. Por vezes, era de grande severidade. Até o filho José Szabo Júnior, guarda-redes, ficou com as orelhas a arder mais do que uma vez. Mas, o alvo das críticas do Mister era o futebolista e não o filho.
O “violino” Fernando Peyroteo admirava profundamente Joseph Szabo, a quem chamava de Mestre. No seu livro de “Memórias de Peyroteo” publicado em 1957, o avançado-centro leonino conta o seguinte:
«Há quem já me tenha dito que Mestre Szabo trata mal os seus pupilos, insulta e ofende os rapazes, castiga-os injustamente. Nada mais injusto e mais falso! Szabo não conhece a gramática da pátria que adoptou. Veio para Portugal para ensinar futebol e não para aprender português. Nos primeiros contactos com a rapaziada da bola ensinaram-lhe, maldosamente, algumas frases a que davam sentido e significado diferentes. Decorou-as e repetiu-as quando lhe parecia oportuno, até que outros melhor intencionados procuraram corrigi-lo.
É certo que por vezes nos dirigia uma palavra um tanto ou quanto violenta e menos própria, mas todos nós sabíamos que mestre Szabo não nos queria ofender ou insultar deliberadamente. Pois, se ele, ao referir-se ao seu filho José - que nesse tempo fazia parte dos futebolistas do Sporting - criticando-o, em presença de todos, por uma má tarde na defesa das balizas do seu grupo, disse tanta barbaridade que nos sentimos no dever moral de o chamar à razão, fazendo-lhe sentir que dizer tais coisas do seu filho era ofender-se a si próprio.
Szabo respondeu-nos: ‘Sinhores fazer favor respeitarem seu treinador. Eu falar com Zé, não chamar família que estar sossegada a casa, no trabaio. Não ter nada quê ver um coisa com outra. Não dizer um coisa dê isso... Família de tudos ser sagrada. Por favor, sinhores não brincar...’»
Na fotografia, Peyroteo segura a taça O Século, acompanhado por jogadores do Sporting, em 1948.
No centenário de Peyroteo
Há citações de determinados autores que se colam de tal maneira à pele de jogadores de futebol que, quando pensamos neles, imaginamos cada palavra desenhada no seu corpo. É o caso de uma afirmação escrita por Albert Camus, em Argel, na década de 1950: “Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol e ao que aprendi no Racing Universitário de Argel”.
Quando me ocorre esta frase do autor de “O Estrangeiro”, que teve uma carreira de guarda-redes interrompida pela tuberculose, e a associo a um jogador, é em Fernando Peyroteo que penso em primeiro lugar. O jogador leonino é uma figura incontornável do futebol português pela qualidade e eficácia do seu desempenho como avançado-centro, pela honestidade e galhardia com que se batia contra os adversários e pela ética e sentido de honra que revelou sempre como praticante desportivo.
Peyroteo encarava o futebol com uma seriedade e integridade inultrapassáveis. Na sua festa de despedida em 5 de Outubro de 1949, num jogo frente ao Atlético de Madrid, justificou o abandono que muitos consideraram prematuro por ter marcado 40 golos em 23 jogos no derradeiro Campeonato Nacional que disputou:
“Fui soldado nas fileiras do desporto nacional e um soldado não foge ao cumprimento do seu dever, seja qual for e em que circunstâncias for! Mas, de hoje em diante, reconheço que sou um soldado velho, não posso corresponder às exigências de preparação de um jogador de futebol que queira manter-se em forma e ser útil ao seu Clube e à modalidade que pratica.”
Afinal de contas, um campo de futebol é como que um arquivo de memórias e Fernando Peyroteo não quis aceitar que o que ele considerou ser o seu declínio físico ensombrasse o imaginário que os adeptos construíram de uma carreira desportiva épica e prodigiosa.
Szabo e a táctica
Joseph Szabo era de uma dedicação extrema ao trabalho. Exigente, preparava com minúcia a táctica da sua equipa antes dos jogos. Foi sempre assim, mas tornou-se ainda mais meticuloso depois do estágio no Arsenal de Londres em 1935.
O treinador húngaro utilizava uns bonecos que colocava num tabuleiro a imitar um campo de futebol onde explicava a táctica do jogo, como os jogadores se deveriam colocar e organizar em campo e as características da equipa adversária. Fernando Peyroteo escreveu nas suas "Memórias" (1957) que, noutras ocasiões em que não tinha o tabuleiro, Szabo "pegava num lápis e num papel, onde marcava bolinhas e cruzinhas indicativas das posições dos companheiros e adversários".
Um dia, no Sporting, os jogadores tinham comprado bilhetes para uma 'matinée' no cinema e Peyroteo atreveu-se a dizer qualquer coisinha por causa de uma prelecção táctica de Szabo que parecia não ter fim. A resposta do Mestre foi pronta e definitiva: "Senhor Fernando, o seu cinema é este". Foi outra a 'matinée' dos atletas leoninos.
FC Porto - Sporting (1940)
Lição de vida
O FC Porto ganhou o Campeonato Nacional em 1939-40, ficando o Sporting em 2º lugar. A fotografia refere-se ao clássico disputado no Campo da Constituição em Fevereiro de 1940, que rebentava pelas costuras. Na imagem, o guarda-redes portista Rosado parece agarrar a vitória, perante a inoperância dos sportinguistas. O Sporting não venceu qualquer das competições em que participou.
Essa época encerrou uma grande lição para o Sporting. O presidente Joaquim Oliveira Duarte pretendeu demitir o Mister Joseph Szabo porque, afinal, ele não estaria a corresponder às expectativas. No entanto, Peyroteo convenceu o dirigente leonino a manter o treinador. A nova época foi absolutamente vitoriosa: os leões conquistaram o Campeonato Nacional, a Taça de Portugal e o Campeonato de Lisboa, dando início a um período de hegemonia no futebol português.
O nadador americano Pablo Morales, vencedor de medalhas de ouro em dois Jogos Olímpicos, referiu-se à atmosfera especial que une atletas e espectadores: “Os atletas e os espectadores do desporto perdem-se em intensidade concentrada”. Há como que uma insularidade, um isolamento, em todos eles, pois ficam de tal forma absorvidos no que se passa que o tempo quotidiano parece ter desaparecido. No futebol todos aguardam por uma aparição repentina, um remate inimaginável, uma acção inesperada, sabendo-se que tudo será irrepetível.
É o que se verifica cada vez que observamos a movimentação em campo de Cristiano Ronaldo. Como aconteceu há cerca de setenta anos com Fernando Peyroteo, com a diferença que o primeiro está largamente documentado em suporte de imagens e do segundo resta, apenas, algum registo fotográfico e diversa descrição jornalística. Mas, ambos possuem uma dimensão mítica no imaginário dos sportinguistas como não se verificará com mais nenhum jogador de futebol.
Essa dimensão mítica decorre do currículo excepcionalmente invulgar de Peyroteo e de Cristiano Ronaldo. Pelos títulos conquistados, pelo número de jogos realizados, pelos golos marcados, pelas internacionalizações conseguidas, pelos admiráveis feitos desportivos. E pelo facto dos seus méritos terem sido obtidos nos campos de futebol, verdadeiro arquivo da memória de muitos (e muitos !) milhões de adeptos, um reflexo da imagem do espaço social e cenário da existência individual e colectiva.
* Realizou 12 temporadas de "leão ao peito" (1937/38 a 1948/49), com 543 golos em 334 jogos oficiais. Um registo de 1,63 golos/jogo, o maior goleador da história do futebol português:
* Na sua carreira, marcou por 694 vezes em 432 jogos, um registo de 1,61 golos/jogo;
* Na Liga Portuguesa (Campeonato Nacional) Fernando Peyroteo é o melhor marcador de sempre com 331 golos em 197 jogos.
Sabe-se de ciência certa que um jogo de futebol é semelhante a uma peça de teatro. Nele encontram-se os ingredientes principais da arte dramática, sendo que o campo é o próprio palco, o treinador faz de director de cena e os jogadores são os actores. O público, esse, só pode ser o coro como numa tragédia grega. Alcino Pedrosa num belíssimo texto (O Teatro e o Futebol) no Leitura de Jogo mostrou que é assim mesmo.
Esta conversa vem a propósito de um dos dérbis mais espectaculares de que alguma vez ouvi falar. Foi um Benfica-Sporting disputado na Estância de Madeira, no Campo Grande, em 25 de Abril de 1948. Os leões precisavam de vencer por três golos de diferença para, tendo a mesma pontuação do rival, ultrapassá-lo na tabela classificativa do Campeonato Nacional.
Na primeira volta o Sporting foi derrotado no Estádio José Alvalade (antigo Stadium Lisboa) por 1-3. O golo leonino foi conseguido por Travassos aos 89 minutos, mas o desalento da derrota impediu o festejo. Provavelmente, o Zé da Europa não imaginou nesse dia o valor que pode ter um golo marcado a um minuto do final de um jogo de futebol. Daquela vez, nem o coro foi capaz de anunciar o que estava para acontecer.
O Sporting era treinado por Cândido de Oliveira, um benfiquista que jogou de águia ao peito até sair em 1920 para ser um dos fundadores do Casa Pia Atlético Clube. Os jogadores eram do melhor que alguma vez vestira a camisola do leão rampante. Os “Cinco Violinos” e companhia não tremiam no momento de enfrentar o destino num campo de futebol.
A semana que precedeu o dérbi foi de arrasar os nervos para os lados de Alvalade. Peyroteo andou adoentado com febre e, para piorar tudo, na direcção do Clube houve quem desconfiasse da táctica que o treinador estava a preparar para o grande confronto. Houve quem garantisse que seria suicida, desconfiando do benfiquismo de Mister Cândido. Pelos vistos, já não havia memória daquela tarde de Junho de 1923, em Coimbra, quando Cândido de Oliveira foi o massagista dos leões num Sporting-FC Porto nas meias-finais do Campeonato de Portugal.
O Sporting apresentou-se muito forte no Campo Grande. Peyroteo fintou a febre e depositou um póquer de ases na baliza do infortunado Contreiras. Espírito Santo ainda reduziu o marcador, mas os quatro golos do bombardeiro de Alvalade determinaram o destino do título de campeão nacional. Não esquecendo o golinho do Travassos ao cair do pano no dérbi da primeira volta, como que a hybris da tragédia grega (a acção contra o estabelecido) naquele campeonato. Muitos anos mais tarde os Deolinda cantariam que “o que tem de ser tem muita força”. Nem mais !
Então, no meio dos festejos e senhor do seu destino, Cândido de Oliveira profere a célebre frase "somos bestiais quando ganhamos e bestas quando perdemos" e apresenta o pedido de demissão. O director do Sporting que duvidou do treinador procurou-o no emprego para o demover, jurando que a demissão seria a dele, o dirigente. Cândido, grande como sempre, apertou-lhe a mão dizendo que ficavam os dois para a conquista do título.
O Sporting passou para a liderança do campeonato pela diferença de um golo, não havendo alteração até ao final da competição. Os leões foram derrotados em Setúbal, mas às águias aconteceu o mesmo em Elvas. Campeão por uma singela bola que atravessou a fatídica linha da baliza. Uma bola, uma bolinha… um berlinde! Os benfiquistas, desesperados, chamaram-lhe o "campeonato do pirolito". Pegou de estaca até aos nossos dias essa do pirolito, a bebida gaseificada e doce que era feita à base de ácido cítrico e de essência de limão, com um berlinde de vidro a fazer de rolha.
Por ter sido o Campeão Nacional em 1947-48 o Sporting tomou posse da monumental “Taça O Século”, com 1,23m de altura. Venceu, ainda, a Taça de Portugal ao derrotar o Benfica nas meias-finais (3-0) e o Belenenses na final (3-1), coroando uma época memorável com a segunda dobradinha da sua História, para além da vitória na Taça de Honra da Associação de Futebol de Lisboa.
Ficha do jogo
Campeonato Nacional da I Divisão (1947-48)
22ª jornada
Benfica 1 - Sporting 4
25 de Abril de 1948, Estância de Madeira (Campo Grande)
Árbitro - Libertino Domingues (Setúbal)
Benfica - Contreiras, Jacinto e Fernandes, Moreira, Félix e Francisco Ferreira, Espírito Santo, Arsénio, Julinho, Corona e Rogério “Pipi”
Treinador - Lipo Hertzka
Marcador - Espírito Santo (75m)
Sporting - Azevedo, Álvaro Cardoso e Juvenal, Carlos Canário, Luís Moreira e Veríssimo, Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano
Treinador - Cândido de Oliveira
Marcador - Peyroteo (35, 41, 58 e 69m)
Nota: Fotografia da equipa do Sporting com os três troféus que conquistou na época de 1947-48 e de Fernando Peyroteo num dérbi com o Benfica (não datado).
O Sporting conseguiu, neste domingo, a maior vitória da sua história em jogos da I Liga disputados no Estádio da Luz, onde já não vencia desde 2006, ao derrotar as águias por 3-0, na 8.ª jornada da I Liga.
Desde 1948 que o Sporting não vencia por números tão expressivos em casa do Benfica - na altura ganhou por 4-1, "póquer" de Peyroteo, mas o jogo foi disputado no Campo Grande - mas o regresso de Jorge Jesus a uma casa que tão bem conhece traduziu-se num resultado histórico para a equipa leonina, que foi sempre melhor que a do rival.
Há citações de determinados autores que se colam de tal maneira à pele de jogadores de futebol que, quando pensamos neles, imaginamos cada palavra desenhada no seu corpo. É o caso de uma afirmação escrita por Albert Camus, em Argel, na década de 1950: “Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol e ao que aprendi no Racing Universitário de Argel".
Quando me vem à ideia esta frase do autor de “O Estrangeiro” que teve uma carreira de guarda-redes interrompida pela tuberculose, e a associo a um jogador, é em Fernando Peyroteo que penso em primeiro lugar. O jogador leonino é uma figura incontornável do futebol português pela qualidade e eficácia do seu desempenho como avançado de centro, pela honestidade e galhardia com que se batia contra os adversários e pela ética e sentido de honra que revelou sempre como praticante desportivo.
Nascido em Angola, chegou a Lisboa apenas com 19 anos para jogar nos leões, vindo da filial de Luanda. Esperavam-no, para além de familiares, o amigo de adolescência e jogador leonino Aníbal Paciência e directores do Sporting, dirigindo-se todos de imediato à sede do Clube no Palácio Foz. Apesar de muito jovem, Peyroteo já era um futebolista conhecido o que explica o assédio apertado feito pelo Benfica e pelo Porto nas semanas que se seguiram. Recusou os dois clubes de modo peremptório, garantindo que já tinha contrato assinado, embora na realidade ainda não o tivesse formalizado. A sua palavra valia como uma assinatura.
Ficou conhecido o cavalheirismo com que se relacionava com todos aqueles que o rodeavam no futebol, nomeadamente os rivais. Entre estes destacava-se outro angolano, o avançado benfiquista Guilherme Espírito Santo com quem manteve uma longa relação fraterna. Sobre ele, o grande Peyroteo que muitos consideram o melhor avançado português de sempre, afirmou o seguinte: “O Guilherme sempre foi melhor jogador de futebol do que eu, mais técnica, mais jogo. Menos prático, menos golos? Sim, também é verdade. Mas mais jogador.” O futebol e as suas histórias. E o que seria do futebol sem histórias para contar?
Peyroteo encarava o futebol com uma seriedade e integridade inultrapassáveis. Na sua festa de despedida em 5 de Outubro de 1949 num jogo frente ao Atlético de Madrid, justificou o abandono que muitos consideraram prematuro por ter marcado 40 golos em 23 jogos do Campeonato Nacional: "Fui soldado nas fileiras do desporto nacional e um soldado não foge ao cumprimento do seu dever, seja qual for e em que circunstâncias for! Mas, de hoje em diante, reconheço que sou um soldado velho, não posso corresponder às exigências de preparação de um jogador de futebol que queira manter-se em forma e ser útil ao seu Clube e à modalidade que pratica. Quando entro em campo, vou cheio de vontade de jogar, mas, depois de meia dúzia de pontapés na bola, apodera-se de mim um enfastiamento inexplicável.” Afinal de contas, um campo de futebol é como que um arquivo de memórias e o jogador não quis aceitar que a realidade do seu declínio físico ensombrasse o imaginário que os adeptos construíram de uma carreira invulgarmente prodigiosa e épica.
José do Carmo Francisco dedicou a Peyroteo um belíssimo poema publicado em "Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos”, livro que já foi referido aqui no Camarote Leonino. O poeta invocou a chegada de Peyroteo ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em 1937, embarcado no navio Niassa.
Peyroteo – 1937
Como são lentos os eléctricos da carreira de Belém
Que vejo passar bem perto da amurada deste navio
Cheguei de Angola com saudades da minha mãe
Sem nada saber do que se diz nos cafés do Rossio
Há um comboio em Sintra a sair pela madrugada
Que me larga no Rossio para apanhar um amarelo
É muito duro o caminho. Triunfar é uma estrada
Talvez demasiado longa para o meu olhar singelo
Os golos que vou marcar no país e no estrangeiro
Nascem destas longas manhãs de treino e cansaço
Tudo o que faço é sincero e verdadeiro
A mentira desonesta não tem lugar no meu espaço
Sem carta de desobrigação eu aqui não jogava
Ainda hoje estou para saber qual foi a razão
Em Lisboa os directores e toda a gente evitava
Explicar porque não a trouxe eu na minha mão
O húngaro Joseph Szabo e Fernando Peyroteo são duas figuras míticas do Sporting Clube de Portugal e que trabalharam em conjunto ente 1937 e 1945. Nutriam, entre eles, o maior respeito e a mais absoluta admiração.
Szabo, treinador húngaro, revolucionou o futebol do Sporting ao impor uma disciplina férrea no quotidiano dos atletas, o planeamento desportivo da época, o rigor absoluto nos treinos e um sistema táctico revolucionário, o WM. Era frequente utilizar um tabuleiro com vinte e duas figuras para explicar a “táctica”.
Por vezes algum jogador mais brincalhão escondia-lhe os “bonecos” o que provocava fúrias ao treinador que rapidamente se esmoreciam. No fundo, o húngaro era um grande folgazão com um forte espírito disciplinador.
É Szabo quem está na origem dos "Cinco Violinos", ao descobrir o talento ímpar de Peyroteo e de Jesus Correia e conceber o esquema táctico que iria integrar os cinco avançados. Permaneceu oito épocas consecutivas à frente da equipa do Sporting, conquistando treze títulos, um record que ainda hoje se mantém. Voltaria ao Sporting, mais tarde, nas décadas de 1950 e de 1960.
A época de 1939-40 foi particularmente desastrosa, uma vez que o Sporting não conquistou qualquer título nas provas em que participou. O F. C. Porto venceu o Campeonato Nacional e o Benfica a Taça de Portugal e o Campeonato Regional de Lisboa. A contestação foi forte até porque Szabo também fazia questão de granjear as suas animosidades e o presidente Joaquim Oliveira Duarte hesitava na renovação do contrato. Perante a indecisão do presidente e a contestação de alguns directores e sócios, Peyroteo assumiu a defesa do treinador e aconselhou o presidente a manter o técnico. E assim aconteceu.
Ninguém podia adivinhar, mas a época 1940-41 seria extraordinária pois o Sporting venceu pela primeira vez o Campeonato Nacional e a Taça de Portugal, nos novos moldes, para além do Campeonato Regional de Lisboa. O “tri”, como se dizia na altura!
Curiosamente, Szabo não era nada “meigo” com Peyroteo, o seu jogador eleição e que ele considerava a grande estrela da equipa. É célebre a sua exclamação quando Peyroteo se acercava da baliza adversária e o golo era eminente: “Cárega, Maria”! Precisamente por isso, por ser o melhor jogador, Peyroteo tinha responsabilidades acrescidas.
Num dia em que Szabo prolongou a prelecção muito para além do que era habitual e Peyroteo e outros tinham comprado bilhetes para a “matinée”, tendo soado um reparo, de pronto se ouviu o mestre: “Sinhor Férnando, o seu cinéma é este”. Sempre o goleador a ter que dar o exemplo!
Naquele tempo de semi-profissionalismo os jogadores treinavam antes de irem para os empregos. No Sporting, era normal o treino iniciar-se às 7.45 horas ou até antes. Peyroteo residia em Sintra e tinha de apanhar o comboio das 6.03 horas para chegar a tempo ao treino. Um dia que se atrasou, Szabo não permitiu que Peyroteo se juntasse aos jogadores em exercícios de aquecimento. Antes, mandou-o dar quatro voltas em corrida e quatro em marcha ao rectângulo de jogo.
Nesse tempo a equipa realizava dois treinos semanais, mas Peyroteo, que treinava ainda outros dois dias com nove quilómetros de corrida e treino com bola, ficou confiante que o assunto ficaria arrumado com um pedido de desculpas e uma justificação a propósito do despertador que não o teria acordado.
Nada disso. No final do treino, Szabo chamou-o de parte e disse-lhe: “Sinhor Férnando, ter que ser multado dez per cente no ordenado, Férnando ter quê dar exemplo. Tudos égales, Férnando... Ok, Férnando, você treinar quatro vezes por sêmana, eles dois, mas não treinar para mim, treinar para si. Não poder desculpar, outros dizer quê você mênino bonito... Todos égales.”
Como era costume, depois do treino ambos apanharam o eléctrico do Lumiar para os Restauradores. Szabo tinha um plano e Peyroteo começou a desconfiar que o assunto não estaria arrumado. Então, para quebrar o gelo entre ambos, o treinador prazenteiro virou-se para a estrela e disse que lhe perdoava a multa se comprasse um despertador novo escolhido por ele. Peyroteo, aliviado, disse logo que sim. Entraram numa relojoaria da Baixa e foi Szabo que escolheu o despertador. Caríssimo, terá custado 50 escudos!
No domingo, antes do jogo, durante a prelecção à equipa, Szabo estava muito bem humorado: “Sinhores, Férnando não chigar mais atrasado a training. Fumos comprar déspertador, experimentar tocar lá na loja e fazer barulheira quê Azêvedo vai ouvir no Bareiro”.
(Texto adaptado de “Fernando Peyroteo”, por Carlos Loures, e da Wiki Sporting)
A CAMINHO DE LISBOA
«Em Abril de 1936, recebi, em Luanda, uma carta de minha Mãe na qual me informava de que os médicos impunham a sua vinda a Lisboa, para se tratar. Como funcionária do Estado - professora oficial em Moçâmedes - tinha direito a gozar licença graciosa na metrópole. Porque o seu estado de saúde não permitia que viajasse sozinha, convidava-me a vir com ela.
Embora a possibilidade de conhecer Lisboa me desse grande satisfação, contrariava-me o facto de ser forçado a abandonar o emprego. Por outro lado, não podia nem devia negar-me.
Quando, em Luanda, se soube da minha projectada viagem, agitou-se o meio desportivo. A novidade era comentada em toda a Cidade. Assediavam-me com perguntas, davam-me conselhos e faziam-me recomendações. Até o meu Chefe de Repartição, senhor Vasconcelos, me recomendou não deixasse de ir ao "Terreiro do Paço" cumprimentar o cavalo do D. José e ver bem qual era a "pata direita". Com o ar mais grave e sisudo que lhe conheci, dizia ser praxe a cumprir pelos africanos, na sua primeira visita a Lisboa !
Claro que a gracinha nãp pegou porque eu sabia bem que a pata que está direita é a esquerda. Ou não fossem meus pais naturais da Metrópole, para nos falarem, com saudade, destes trocadilhos.»
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