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Ser Sporting não se implora, não se ensina, não se espera, somente se vive... ou não.
Aconteceu no “Prolongamento” da TVI24 com Pedro Guerra: “Isto é claramente um lance em que o Filipe empurra o Jonas, que se desequilibra e vai bater no Nuno Espírito Santo. Queria era apreciar o lance imediatamente a seguir, em que Maxi agride Jonas, mas disso o Sporting não quer falar. No afã de ajudar o Porto, esqueceu-se do lance.”
Naquela noite de 3 de Abril, Pedro Guerra entregou-se novamente ao desempenho do frenético personagem que criou para o programa em que faz a defesa do Benfica, a sua defesa do Benfica. Apareceu como sempre faz, de fato, camisa e gravata e munido de folhas e dossiês onde constavam os seus argumentos válidos, saídos da sua cabeça, porque, diz ele amiúde, está ali em nome pessoal e não como porta-voz do clube. Não é bem assim.
Horas antes de se pegar com José Pina e Manuel Serrão, os dois outros comentadores do “Prolongamento”, Pedro Guerra recebeu no seu correio electrónico um documento com sete páginas de Word e com o cabeçalho “SLB, Época 2016/17, SEMANA 36 — 03/10 abril, NOTAS”. No ponto 2, “sobre o choque casual entre o Jonas e o NES”, está a seguinte frase: “Como é que alguém adivinha que vai ser empurrado por um adversário e que desse empurrão vai entrar em desequilíbrio e chocar com alguém [...]?” Isto é mais ou menos o que Guerra diria mais tarde em antena; acrescentou-lhe o picante Sporting, que também estava no e-mail que caíra na sua conta: “É uma vergonha que os jornalistas e comentadores ligados ao Sporting [...] falem do Jonas e não falem das situações mais DISCUTÍVEIS.”
O departamento de comunicação do FC Porto cunhou a expressão quando revelou que os comentadores televisivos identificados como benfiquistas recebiam extensos briefings semanais para se prepararem para os debates televisivos. A prática é comum aos clubes rivais — no FC Porto comunica-se por WhatsApp e Bruno de Carvalho chegou a enviar pessoalmente informações aos comentadores —, mas a estratégia do FC Porto foi colar a ‘cartilha’ a Luís Filipe Vieira e aos dirigentes do Benfica, que sempre se demarcaram oficialmente do que dizem Pedro Guerra (TVI24), André Ventura (CMTV), Rui Gomes da Silva (SICN) ou João Gobern (RTPN), para se manterem à margem das polémicas.
O e-mail de Luís Filipe Vieira consta entre os que recebem os documentos — o Expresso teve acesso a várias ‘cartilhas’ de diferentes momentos de outras épocas, nas quais o endereço de Vieira surge em primeiro lugar —, e isto implica directamente o líder do clube na estratégia comunicacional. Que é continuada, consistente e organizada e usa palavras e frases agressivas como “desprezo”, “mentiras”, “louco chamado BdC [Bruno de Carvalho]”, “marginais/criminosos [Super Dragões]”, “manipulação”. E todas elas são escritas pela mesma pessoa.
Nas manhãs de segunda-feira, Carlos Janela lê os jornais, pesquisa casos de arbitragem dos jogos do fim de semana, faz um ou outro telefonema, senta-se ao computador e começa a escrever. Perde dois, talvez três pares de horas naquilo, até completar um documento Word com muitas páginas, algumas letras maiúsculas, palavras a negro, bastantes pontos de discussão e, sobretudo, recomendações. Depois envia o documento por e-mail para os vários comentadores afectos ao Benfica. O objetivo é apresentar o máximo de tópicos e de informações para que Guerra, Ventura, Gomes da Silva ou Gobern possam escolher o ângulo — e para que isto não pareça tão concertado como na realidade é. Aliás, quem conhece o mecanismo diz que parte dos comentadores fala entre si, para que haja uma “uniformização do discurso”, para não ser uma “grande rebaldaria”.
Todas as semanas há uma nova ‘cartilha’, e Carlos Janela é o seu autor desde o início, desde 2010, o ano em que conquistou espaço de influência junto de Luís Filipe Vieira. Um ano depois de ter entrado para o clube, pela mão de Jorge Jesus. Os dois cabem nesta história.
Carlos Janela é uma velha raposa do futebol português, com passagens por Famalicão, nos anos 80, Sporting, no final dos anos 90, e Belenenses, na primeira década deste século. Foi director desportivo nesses três clubes, e nesses três períodos houve casos, como o que envolveu o Macedo de Cavaleiros e o Fafe em 1988 (uma invasão de campo e uma acusação de suborno) e o “Processo Meyong” (utilização irregular do jogador), e contratações falhadas (em Alvalade, ficaram célebres as de Didier Lang, Skuhravy e Ouattara). É no Belenenses que trabalha com Jorge Jesus, e é daí que muita gente data o início da relação entre ambos, mas a verdade é que esta começou há muito, muito tempo, quase há 40 anos, quando os dois coincidiram no Riopele — Janela era juvenil, Jesus era sénior, tornaram-se amigos. E foi essa mesma amizade que levou o treinador a interceder por ele junto dos dirigentes do Benfica quando foi contratado em 2009: Janela era o tipo indicado para andar nos bastidores, porque conhecia meio mundo e porque mantinha boas relações com clubes de associações nortenhas.
O ex-director desportivo do Belenenses começou como consultor do Benfica e trilhou o caminho até chegar a autor da ‘cartilha’, coordenando essa função supervisionado por João Gabriel, antigo director de comunicação dos encarnados. Por este trabalho, Carlos Janela recebia cinco mil euros por mês, ordenado que poderá ter subido, talvez duplicado, quando Jesus pulou para o outro lado da Segunda Circular e o quis levar com ele.
Jorge Jesus impôs algumas condições para transitar da Luz para Alvalade, uma delas a ausência de uma cláusula de rescisão, outra a reformulação do futebol profissional. A chamada estrutura. O homem que ele queria para director-geral da bola era Carlos Janela, secundado por Octávio Machado, ambos ligados ao Benfica formal ou informalmente — Octávio chegou a comentar na BenficaTV e a atacar Bruno de Carvalho na CMTV e é amigo de Jesus e de Janela, com quem, aliás, trabalhou no Sporting. Otávio seguiu para Alvalade, mas Janela manteve-se na Luz e terá visto o seu rendimento recompensado, tal como manda o mercado. Por isso, quando ouvir Jesus insinuar que conhece bem as estratégias comunicacionais do Benfica — e ele fá-lo, recorrentemente —, já sabe que está a referir-se a Janela, cuja produção continuou longe dos radares, até ser descoberto.
Os indícios da estratégia comunicacional estavam lá, porque os argumentos usados por diferentes comentadores eram semelhantes, mas quando alguém fotografou Luís Bernardo (o novo director de comunicação do Benfica) com Carlos Janela, João Gobern, André Ventura, José Calado e Pedro Guerra começaram a juntar-se os pontinhos que apontavam o trilho que levava diretamente à cúpula encarnada. A estrutura não era só o director desportivo, os jogadores e os olheiros. A estrutura também era a ‘cartilha’.
Nota: Carlos Janela respondeu ao Expresso dizendo: “Nunca vou quebrar o sigilo profissional e revelar com quem colaboro.” O Benfica afirmou não ter “mais comentários a fazer”.
Artigo e ilustração da autoria de Pedro Candeias e Helder Oliveira, jornal Expresso.
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